sábado, abril 07, 2007

Texto da Rita

# Comemorando a volta das atualizações, um texto da Rita que gostei muito. Se você não gosta dessa política dos EUA, que nem eu, vai gostar tb. Aproveitem!

------------------------------------------------

# COMENTÁRIO SANGÜÍNEO
# Por Rita Maria Felix da Silva

# Naquela época, se você fosse um vampiro, viajasse pelo interior de Pernambuco e decidisse parar em São Bento da Trindade, aquela cidadezinha realmente encantadora, uma boa opção era conhecer o bar “A Bela Arte Noturna”. Fácil de achar. Terminando a Rua Brigadeiro Valentino, dobrando a direita e atravessando o Beco Jornalista Olegário Episcopal (que, antigamente, chamava-se apenas de “Beco das Princesas”), você saía logo em frente ao “A Bela Arte Noturna”. Lugar perfeito para tomar algum sangue e relaxar.
# Em São Bento da Trindade, o assunto nunca era comentado, especialmente com forasteiros. A maioria do povo, quando muito, dizia que se tratava só de uma lenda. Ninguém falava do acordo tácito que tornava aquele bar um refúgio para vampiros. Humanos nunca se aproximavam do lugar e, assim, as duas espécies viviam em paz.
# Foi em uma daquelas noites, quando o verão parece que nunca vai acabar e o céu fica esquecido do que é chuva. Olaf Valeriano entrou animado no “Bela Arte Noturna”. Celular colado no ouvido, debaixo do braço uma valise de couro, na mão esquerda um palmtop, onde rodava um videoclipe de Avril Lavigne. Vivia de promover festas para a grã-finagem das metrópoles, mas agora estava de férias. Sorriso no rosto, deliciava-se com o sotaque ucraniano, ao telefone, de Magda, sua namorada virtual, que conhecera na Internet e logo viria ao Brasil. A conta bancária estava cheia, o coração apaixonado, a vida era um tempo adorável para se viver. Sentia-se feliz e com fome também. Alguns copos de sangue seriam bem-vindos.
# Desligou e guardou o palmtop. Sentou-se a uma das mesas, lá bem no canto do bar, afinal queria toda a privacidade para poder continuar conversando com Magda.
# Gritou para o garçom um pedido. Veio um jovem magrinho, tímido, a cara tristonha, como se estivesse se rasgando por dentro com dilemas de consciência. Certamente, um vampiro recém-transformado, imaginou Olaf, e, se havia algo que ele realmente detestava no mundo, era esses novatos.
# O rapaz colocou uma garrafa na mesa, junto com um copo e perguntou-lhe se queria mais alguma coisa. Sabe aqueles momentos em que um tremendo azar tem de acontecer? Olaf estava tão distraído com Magda (ela recitava um poema), que já ia colocar o sangue no copo e beber despreocupadamente, quando algum tipo de intuição o fez olhar o rótulo da bebida.
# O rosto dele mudou de felicidade para surpresa e depois para uma ira selvagem. Despediu-se da namorada, desligou o celular, colocou o aparelho na mesa, ergueu-se devagar da cadeira, soltou um grito animalesco e, com a mão direita, arrancou o coração do garçom. O corpo do rapaz caiu no piso de madeira avermelhada. Olaf jogou o órgão perto do cadáver. Adorava sangue, mas desgostava de carne.
# Os outros vampiros no bar olharam com surpresa para a cena, mas logo voltaram a seus próprios interesses. Não interferir em assuntos alheios sempre foi uma boa política de autopreservação.
# Todavia, um vampiro corpulento saiu de detrás do balcão e caminhou até Olaf.
# — Posso saber por que fez isso? — disse.
# — E quem seria você? — questionou Olaf.
# — Apenas por acaso, — respondeu o outro — Meu nome é Humberto e sou o dono deste bar. Esse rapaz...
# — Esse, — interrompeu Olaf apontando para o corpo no chão — o que tinha cara de imbecil?
# — Esse aí mesmo! O nome era Durval e podia ser realmente um idiota, todavia era filho de um amigo meu, um humano a quem eu devia um favor. Me pediu que transformasse o filho, porque amava o garoto e queria para ele “vida eterna”...
# Olaf sorriu de forma cínica:
# — Ora, considere que nossa espécie não perdeu muito.
# — Talvez não, porém... — Humberto estalou os dedos e quatro outros vampiros, mais corpulentos até do que ele, aproximaram-se — Estes cavalheiros são meus seguranças. Especialistas em desmembramento, aliás. Você entrou em meu bar e, sem provocação, assassinou alguém que estava sob minha guarda. As boas maneiras pedem que lhe dê alguns segundos para que se justifique antes que eu o mate.
# — Uma justificativa? Ora, sou pacifista, anti-imperialista, ecologista, anti-neoliberal, socialista, tolerante com religiões não-cristãs, socialmente engajado, ateu, evolucionista, simpatizante de Castro e Chávez e, observe só, o que foi que seu funcionário veio me servir!
# Humberto pegou a garrafa ainda na mesa e virou o rótulo para si. Ao ler, começou a gargalhar:
# AMERICAN BLOOD. COLLECTED IN VIRGINIA BEACH, VIRGINIA, USA.
# SANGUE AMERICANO. COLETADO EM VIRGINIA BEACH, VIRGÍNIA, EUA.
# Olaf riu junto com ele. Os seguranças e os demais fregueses não entenderam o que estava acontecendo.
# Depois de alguns instantes, Humberto disse:
# — O garoto não sabia. Certamente, foi só um lance de azar.
# — É, vai ver foi isso mesmo — concordou Olaf.
# — Olhe, — continuou o dono do bar — realmente lamento por esse transtorno. Pessoal, — disse se virando para os seguranças — está tudo bem. Senhor...
# — Olaf.
# — Senhor Olaf, eu lhe ofereço uma outra garrafa, sem o inconveniente desta, obviamente, e por conta da casa. Que tal algo brasileiro?
# — Sangue brasileiro? Claro!
# — Preferência de safra?
# Olaf ponderou por um segundo:
# — Piauiense, por favor.
# Humberto virou-se e foi atender o pedido, levando consigo a garrafa que havia motivado toda aquela agitação. Um novo garçom logo trouxe a bebida. Um dos seguranças removeu o corpo de Durval. Olaf sentou-se, religou para Magda e passou às próximas duas horas ao telefone.
# E o restante da noite foi tão tranqüilo e normal quanto era possível para o Bela Arte Noturna.

# FIM

# Dedicado a Kathleen Marienne McHill e Sasskja van Hoojissel

# Apêndice:

# "Bela Arte Noturna, A: muitas vezes usada apenas como 'Arte Noturna' ou simplesmente 'Arte', forma poética com a qual os vampiros definem sua condição, opondo-se à 'condição humana' ou 'humanidade' (daí também existir a nomeclatura 'vampiridade'). Muitos estudiosos, particularmente Schorsey e Killney, não recomendam a expressão reduzida 'Arte', pela possibilidade de confusão com o mesmo termo usado pelas bruxas para se referirem as suas práticas mágicas/magia." (Winterwood, Neil, “A Little Dictionary of the Hidden Things”)

Nenhum comentário: