quinta-feira, dezembro 07, 2006

Drácula - o livro

# Dia 11 vai ser um dia decisivo pra mim. Logo depois das doces comemorações de aniversário, vou ter que botar o pé na estrada pra fazer a temidíssima prova de (A)Fundamentos de Mecânica. Tenho que passar a todo custo! Mas como não dá pra estudar Física o dia inteiro sem o cérebro fundir, enquanto eu descansava, carreguei umas pedras e me aventurei a fazer algo que eu já queria há muito tempo: uma análise do livro "Drácula" do Bram Stoker. Já li o livro tem quase um ano e meio, o que me despertou a lembrança de escrever a análise foi um e-mail do Pete que falava que a Desfolhar ia falar sobre literatura inglesa no próximo número.
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Análise de “Drácula”
# O Drácula é uma das figuras mais famosas dos filmes de terror. O cinema já o retratou de várias formas, sendo a mais conhecida a imagem do ator Bela Lugosi com sua capa ondulante, seu cabelo emplastado de brilhantina e seu olhar frio e superior. Porém, quando alguém pega o livro “Drácula” de Bram Stoker, o que se percebe é que a história do conde vampiro é bem diferente da maioria das adaptações cinematográficas que o livro recebeu.
# Para começar, “Drácula” não é uma história propriamente de terror, com o fito de assustar a pessoa e fazê-la perder o sono à noite. Longe disso. É uma história que pretende passar um pouco de esperança a quem lê. Se no fim do livro houvesse uma “moral da história”, como nas fábulas, essa moral seria: não importa o quanto o Mal parece poderoso e imponente e o quanto o Bem pareça fraco: desde que haja trabalho árduo e perseverança, o Bem sempre acabará vencendo.
# Outra coisa é que, antes de ser uma história de monstros e castelos mal-assombrados, “Drácula” é uma espécie de alegoria de luta do Bem contra o Mal. Não dá para dizer se isso era a intenção consciente de Stoker ao escrever o livro, mas a verdade é que mesmo matizes dessa luta estão presentes na história.
# Ao analisar o livro, achei que seria melhor fazer isso pelos personagens, acrescentando ocasionalmente alguma fala deles, numa tentativa de explicitar melhor o papel de cada um deles na alegoria já citada. A análise contém alguns spoilers, mas a verdade é que a história de Drácula já foi tão exaustivamente recontada, que várias surpresas, várias situações de suspense que o autor cria, já nos parecem velhos clichês, a despeito da sensação que devem ter feito na época de lançamento do livro. Cada um fica livre para prosseguir ou parar e ler a obra primeiro.
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# Transilvânia: Antes de mais nada, é melhor fazer alguns breves comentários a respeito da região mais citada em contos de terror. A Transilvânia não é uma terra triste e desolada como alguns filmes costumam mostrar. É, na verdade, um lugar de belíssimas paisagens e altamente recomendável para turistas. A própria Mina Harker, ao se aproximar do clímax da história, comenta que, sob outras circunstâncias, seria um prazer viajar por uma região tão pitoresca e interessante. O verdadeiro motivo de ser a região escolhida para que a história de Drácula se desenrole é o fato de ser uma área dominada pela superstição.
No século XIX, quando “Drácula” foi escrito, a Europa passava por uma efervescência de racionalismo. Por isso, naquela época, superstição era sinônimo de ignorância. Temos aí nossa primeira alegoria da história: o Mal (no caso, o Drácula) se desenvolve e se torna poderoso em meio à ignorância, simbolizada pela Transilvânia.

# Igreja Católica: Na história, os símbolos sagrados da Igreja Católica exercem o poder de afastar os vampiros. É interessante observar que isso não quer dizer que o catolicismo seja a melhor de todas as religiões. Pode simplesmente significar que a religião como um todo, praticada com a mesma fé demonstrada pelo prof. Van Helsing, é o que há de mais poderoso para afastar o Mal da vida de uma pessoa.

# Drácula: O mais famoso personagem do livro não tem nada de sedutor ou solitário, como popularizado pelos filmes. Ele é uma criatura quase desumanizada, cujo objetivo é espalhar seus “filhos” sobre o mundo e reinar sobre eles. É bastante inteligente, sabe discursar de maneira elegante, possui vastas reservas de dinheiro, mas tem o que o prof. Van Helsing chama de “prodigiosa mente infantil”. Infantil porque não avaliava todas as possibilidades antes de agir. Além, é claro, de seus famosos poderes de transfiguração, sua força, seu domínio sobre os animais e fenômenos da natureza e sua eternidade e o fato de ser conde, ou seja, um nobre, com posição privilegiada em relação aos outros homens.
# Tudo isso leva a crer que Drácula nada mais é do que uma personificação do Mal: ele quer expandir seus domínios e, para isso, dispõe de amplos recursos, em todas as áreas (financeira, intelectual...) e é gentil e melífluo quando quer algo de uma pessoa, não hesitando em descartá-la quando ela não é mais necessária. Só que o Mal não é tão livre como o Bem (Drácula só pode entrar em algum lugar se for convidado, assim como o Mal só entra no coração de alguém se a pessoa permitir) e não possui uma visão muito vasta: ele vê apenas o presente e o “eu”. Por isso, é tão egoísta e cruel.

# Dia de São Jorge: Dia que, segundo a crença romena, todos os males do mundo estão livres para correr pelo mundo. É precisamente o dia em que Jonathan Harker vai para o Castelo Drácula, o que reforça o fato de que Drácula pode estar personificando o Mal como um todo.

# Professor Van Helsing: É a própria antítese do Conde Drácula. O professor é um homem idoso muito inteligente e crítico, que confessa ter sido um grande cético a respeito do tema “vampiros” até estar diante do caso da Srta. Westenra. Ele é tão gentil e respeitoso que é impossível levá-lo a mal. Representa a inteligência usada para o Bem e a mente aberta a novas idéias, por mais estranhas que essas idéias possam parecer. O venerável ancião é uma pessoa de resolução muito mais forte do que as suas palavras doces podem fazer parecer e não hesita diante de nada, nem mesmo diante da reprovação de um grande amigo, para levar sua tarefa ao fim. Nas palavras de Jonathan Harker, “Ele é o homem que nasceu para caçá-lo e desmascará-lo” (ao Conde Drácula).
# Em alguns momentos, vemos também o prof. Van Helsing fazendo uma dura crítica ao materialismo cego do século XIX. Nessa época, nota-se uma verdadeira epidemia de fenômenos inexplicados pela ciência, como as famosas mesas girantes, materializações, transes sonambúlicos... As explicações dadas à época (algumas ainda hoje repetidas) eram capengas e, muitas vezes, resumiam-se a uma obstinada negação que tais fenômenos de fato ocorressem. Em quase todas as vezes, o detrator em questão sequer conhecia a fundo o fenômeno que criticava. Sobre essas pessoas, o professor diz: “Ah! Essa é a grande lacuna da nossa ciência positiva, que continua eximindo-se e recusando a esclarecer todos esses inexplorados ângulos do saber. Ou então, quando pensa que os aborda, limita-se a dizer-nos que nada tem a explicar.” Essa advertência continua bastante atual, é preciso que se diga.

# Jonathan Harker: Um tranqüilo homem de negócios que vai à Transilvânia tratar de assuntos imobiliários com Drácula. Durante as provações que passa no Castelo, fica evidenciado que possui nervos de aço e uma mente fria e lúcida. Ele representa a coragem que surge nos momentos difíceis, mostra que a mais comum das pessoas (um agente imobiliário) pode se tornar um herói se necessário.

# Dr. John Seward: É o próprio retrato do homem comum. Ele é inteligente, mas não é um gênio. Tem bastante bom-senso e bastante senso comum, também. Ora acredita nas palavras de Van Helsing, ora capitula por ser uma idéia radicalmente nova. Apesar disso, uma vez que forma sua opinião, vai até o fim na empreitada.

# Lorde Godalming: o pobre Arthur é o noivo de Lucy e representa o poder e o dinheiro empregados por uma boa causa. Como diz Mina, “Do que ele [o dinheiro] não será capaz, se bem aplicado, e como se torna prejudicial quando dele se faz um uso indevido e vil.”

# Quincey Morris: Ele é a Coragem, com C maiúsculo, um homem que é quase um cavaleiro medieval, tanto em coragem como em fidalguia. Rodou o mundo participando de caçadas e todo o tipo de aventuras.

# Esses quatro homens, Jonathan, John, Arthur e Quincey, podem ser encarados como sendo as facetas do homem ideal. Jonathan é resoluto, corajoso e absolutamente dedicado a sua mulher. John é prudente e leal a toda prova. Arthur é um apaixonado e Quincey, o perfeito cavalheiro. Os quatro unem forças, no decorrer do livro, em torno da imagem da Mulher, primeiro presente em Lucy, depois em Mina. Em alguns momentos, a história pode soar a machismo: os homens não querem deixar Mina participar das confabulações contra Drácula, por acharem que as emoções dessa caçada serem muito forte para uma mulher. Mas o próprio Bram Stoker quebra essa crença, quando faz com que Mina se torne peça chave na busca pelo Conde.
# Prossigamos com a análise das duas personagens femininas.

# Lucy Westenra: Lucy é a própria encarnação na doçura e da pureza. É uma jovem muito sensível e recebe propostas de casamento de três homens: Dr. Seward, Quincey e Arthur, preferindo o último. Sua pureza, entretanto, é maculada pela mordida de Drácula (hum... pressinto uma explicação freudiana aí), que não descansa até matá-la e transformá-la em uma morta-viva, a despeito do trabalho dos três homens que a amavam mais o prof. Van Helsing para mantê-la viva.
# Aí está uma alegoria interessante. Lucy era uma garota pura e inocente até o Mal tocá-la. Enquanto estava viva, ela lutava com esse mal. Logo que morreu, o Mal a subjugou de vez, tornando-a uma criatura cruel e lasciva, por pouco não levando seu noivo pelo mesmo caminho. Isso pode ser encarado como um exemplo de “O homem nasce puro, a sociedade o corrompe” ou de “Deus cria todos os seres simples e ignorantes, mas, através de seu livre-arbítrio, eles podem optar em seguir o caminho do mal”.
# Quando o grupo de homens já citado finalmente espeta uma estaca em seu coração, o Mal a deixa e ela volta a ser pura aos olhos deles, embora portasse o que o Dr. Seward chamou de “os sulcos ali deixados pelo sofrimento e pela natural devastação. Estes, porém, nos eram muito caros, pois apenas revelavam a autenticidade de uma alma que tão bem conhecíamos.” Esses sulcos são a marca de quem se aventura pelo Mal, sofre, mas consegue recuperar sua bondade essencial. Mesmo que as marcas deixadas por esse mal permaneçam, elas são apenas o testemunho de que a alma conseguiu superar uma rude prova.

# Mina Harker (nèe Murray): Cá está. Mina é uma personagem maravilhosa. Ela é a Mulher, a imagem ideal do sexo feminino. Mesmo que os homens tentem mantê-la afastada da perseguição a Drácula, ela prossegue ajudando-os de sua forma. Tem muita percepção e sensibilidade, além de inteligência e capacidade de organização. É eficiente e não gosta de ficar inativa. Quando Drácula a “batiza” com seu sangue, assim como Lucy, ela percebe que foi tocada pelo Mal. Mas, ao contrário de Lucy, ela não se prostra. Permanece ajudando e acaba mesmo desenvolvendo um elo telepático com o Conde que se prova muito útil. Quando vem o clímax, embora ela seja a vítima mais desditosa da eventual falha da caçada, ela se preocupa mais com os perigos que Jonathan corre ao se expor aos perigos e não cessa de agradecer a Deus por ter quatro “bondosos homens” e mais o professor dispostos a morrer por ela.
# Essa imagem de mulher idealizada fica mais evidente quando:
# a) as noivas de Drácula aparecem para tentá-la, dizendo sedutoramente “Venha conosco, irmã!”. O horror e a perplexidade dela são maiores que tudo, apesar de, nesse momento, Mina já estar sofrendo de vários “sintomas típicos” do vampirismo.
# b) o prof. Van Helsing vai exterminar as noivas de Drácula, ele sente toda a sedução delas, seu encanto e sex-appeal. Só consegue terminar a tarefa ao “ouvir” a voz de Mina, um apelo espiritual, mostrando que Mina é algo transcendente, que vai além mesmo dos apelos da carne. Nessa acepção, a moça pode mesmo representar pura e simplesmente o Amor em contraste com o Desejo.
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# Novamente, não nos é possível dizer se a intenção de Bram Stoker era, conscientemente, expressar as idéias acima quando escreveu sua história. Talvez ele simplesmente quisesse escrever uma história de terror. Mas é justamente essa antítese bem-mal presente na história que tanto atrai as pessoas até hoje: a despeito da crença ou não crença que uma pessoa apresente, esse tema muito dificilmente deixa alguém indiferente.
# Vencer as 587 páginas de “Drácula” não será, portanto, completamente vão a quem tiver, como Van Helsing, a mente aberta e despreconceituosa. Apesar da literatura de terror, assim como a policial, ser considerada “subliteratura”, pode-se refletir muito com a leitura desses livros, ou, na pior das hipóteses, pode-se esquecer os problemas por algum tempo e, ainda, ter-se uma mensagem de esperança.

# Para encerrar, algumas das melhores frases do livro:

# “Presumo que nós mulheres sejamos tão covardes que pensamos que um homem nos livrará de todos os nossos temores, e por isso nos casamos com ele.” Lucy

# “Por que não se permite que uma moça se case com três homens, ou com quantos a queiram, acabando assim com todo esse problema?” Lucy, após receber três comoventes pedidos de casamento e só aceitar um.

# “É que o trem deveria partir antes das oito da manhã. Este propósito, entretanto, não foi além da intenção, pois a despeito de minha correria para chegar à estação às sete e trinta, fiquei imobilizado em minha poltrona por mais de uma hora diante da plataforma de embarque até soar o sinal da partida. Parece-me aqui que quanto mais nos afastamos para leste mais aumenta a impontualidade dos comboios ferroviários. Nesta progressão, o que dizer desta pontualidade na China?” Jonathan Harker, em Klausenburgo, Romênia.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá, gostei imenso da tua análise do Dracula!
Já agora gostava de saber se sabes alguma coisa sobre o tema " Reverse Decolonization in Dracula", pois tenho um trabalho da faculdade com este tema e estou um bocado à "nora" xD

Anônimo disse...

Parabéns aos criadores! Gostei demais da análise, me ajudou bastante. Muito obrigado MESMO!